quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Tom menor

Derrubaram o morro da Matinha, recortaram as florestas que enfeitavam os quintais. Plantaram esquisitos edifícios no lugar. Deram outro nome para a barra, vão querer tirar, na marra, a Matinha de onde está, o meu amor resistirá na solidão de uma canção, feita de sonho e de perigo, só pra não contrariar o tom menor no violão.

Mas faz muito tempo...

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

As mais lindas da Matinha

Tetê, Net e Sissi, a mais nova e a mais velha, louras. Sissi, chocolate. Tereza, Janete, Cecília? Nomes não importam agora. Tetê teria 20 anos? Net, uns 17, 16? Tetê, macacão jeans, surrado, tranças, universidade, Ivan sempre com ela, negro violão, louco de fumo, ponta direita, Mangueirinha, tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu, cantou outro dia num canto da mangueira, Tetê e uns amigos, a gente - do morro - na bicora. Faltava luz. Belém se ilumina a motor, herança dos ingleses, da borracha. Famílias conversam com os vizinhos na frente das casas, no escuro a molecada solta, roda, Marisca apascenta rebanhos, pira-cola, maromba, anjo bem, anjo mal, ai, caí no poço, de onde se tira, pelo pescoço...bombaqueiro, bombaqueiro dá licença de passar, carregado de filhinhos para a casa embelezar... Passarás, passarás, dou licença de passar, se não for o da frente, tem que ser o de trás: garfo ou faca? Net é Senhora Dona Sancha, coberta de ouro e prata, que descobre seu rosto, pois nós queremos vê-la deslizar de patins, shortinho, tênis surrado, rosto vermelho, amendoados olhos, à noite, após a missa, na Rainha da Matinha, onde um sorvete se lambuza nela.


Sissi: aragem no matagal, ancas a menear corações.

domingo, 31 de julho de 2011

Graça

Graça era negra, tinha não mais que 17 anos. Viera do Marajó, trazida pelo tio, cabelos enrodilhados que minha mãe comparava a cocozinhos de cabrito e a mim me lembravam a música do Roberto Carlos na Marajoara - debaixo dos caracóis de seus cabelos, uma história pra contar, de um mundo tão distante. Falava pouco a menina, com a boca nem precisava, que os olhos diziam tudo. Malaia, a bunda perfeita como uma meia-lua, mal contida no shortinho que ela vestia quando, aos sábados, subia o morro para fazer as unhas e ver televisão na minha casa.
Nessa hora, no bilhar da esquina, tacos ficavam suspensos no ar, goles de cerveja eram interrompidos, copos sebosos lambiam a saliva das bocas, enquanto os olhos se espichavam no esforço de entrever os meneios da cabocla. No Seu Teixeira, ela era uma unanimidade: "Nem a Rita Cadillac era tão boa!".
Graça era puta, mas não era uma qualquer. Chegara à pensão da Eunice para o coronel que controlava a casa. Tinha privilégios. Era exclusiva, até que o comandante mandasse vir outra do interior, onde miséria e menina bonita são sempre uma combinação conveniente.
Não era alegre, nem triste. Ria um riso moleque, pulava macaca e adotou de pronto Marisca como afilhada. De mim não gostava. Notou meus olhos compridos no busto dela, quando me carregou uma vez. Me chamava de sonso. Aos seis anos, eu era. Graça adorava meu irmão caçula, acho que porque ele chorava muito quando ela, malina, dizia que ia levar ele pro quarto.

sábado, 18 de abril de 2009

Caveira elétrica

Cão em figura de gente, maria-homem, menina levada da breca, Marisca era adorada e temida pela molecada que campeava solta em meio aos becos e quintais do Morro, empinando curica, correndo atrás de papagaio, tecendo rabo de plástico ou papel de seda de cangulas e rabiolas, jogando fura-fura, pulando macaca, brincando de pira ("maromba", “coca”, “sisconde”, “cola”, “mãe” e outras tantas). Mais de uma vez sangrara narizes de quem se atrevera a malinar seu irmão mais novo, o Sarapó, um fiapo atrevido que se fiava na força física e moral da irmã mais velha. E quando não podia no braço, havia sempre uma estaca e os sete irmãos mais velhos, todos eles cevados em uma academia de fundo de quintal, manejando pesos forjados a cano e argamassa. Ninguém ali, em sã consciência, se metia com Marisca e seus irmãos. E, além de tudo, eram todos filhos de Dona Francisca, uma das pioneiras na Matinha, devota do Sagrado Coração de Jesus, catequista estimada na Igreja de Fátima. Tava escurecendo quando Marisca perguntou: - Tu tens medo de caveira elétrica?

Pixãin

Volta à calçada e observa absorto o pires no chão. Passa o dedo. É sal! Nem bem constata e o vulto já lhe salta aos olhos, de costas, do galho ao chão com uma verde manga empalmada. Vem para o seu lado, um tantinho maior que ele, movimentos rápidos como os de Mogli. Senta-se perto do pires, corta a manga com a faquinha, passa no sal, leva à boca, lambe os dedos e só então se dá conta daqueles dois grandes olhos em si. Percebe a coisinha magra e escura que a devora – e à sua manga com sal - e dá as boas-vindas: corta outro pedaço, passa no sal e oferece: - É manga verde, com sal! Eu peguei lá no olhinho!, e aponta o topo da Mangueira. O garoto aceita, nunca tinha comido assim, na faca, com sal, de lamber os dedos e os beiços e de aconchegar –se sob a proteção de Marisca, oito anos, um azougue de cabelo pixãin.

Marisca

Tava ali, emburrado, orelha ardendo, mais de vergonha que do tabefe da mãe ou do ferrão da saúva. Haviam esquecido ele no meio do leva-e-traz de móveis, que subir aquele morro não é fácil, principalmente depois do aguaceiro que alagou a cidade e transformou em cachoeira o canal na Vila do Manelão, amontoado de quartinhos mal-cheirosos adentrando a Matinha. O menino olha, com inveja, os moleques que se esbaldam em meio à lama e ao mato, comendo manga e abiu, fazendo guerra de ingá e balando caroço de açaí um no outro. Ninguém de chinelo ou camisa, todos imundos de lama e chuva, mergulhando no igapó em liberdade. Então, aquilo era ser mais velho? Aquilo era ser moleque? – matutou, no momento exato em que viu uma saúva se debatendo, a teia na cumeeira da casa, e a aranha que se esquiva dos pingos que lhe ameaçam o almoço. Nesse instante, ela cruzou seu caminho.
Cabelo sarará, short curto, olhos de amêndoa, pele escura, enorme boca pura, lábios porosos, Tanajura! Aquela que te perspega a dor de uma saudade! Viu ela se acocorar na porta da casa, pires de sal e faquinha nas mãos, olhar pra cima da mangueira, fechar um olho como quem mira, procurar o melhor ângulo e, num átimo, saltar, apoiar um pé na saliência do tronco, segurar-se num galho e escalar, osga lépida a ignorar lei da gravidade, mangas suculentas ao alcance de vara ou pedrada, sem contar as esmolecidas no chão, entregues à umidade, mato e lama. Mas que sabor pode estar ao alcance deste paladar que se confunde com os galhos e folhas da mangueira que chove renitente sobre nós, imperiosa, mesmo depois que a chuva passa, absolutamente alheia aos humores do tempo? O garoto olha para cima, confuso, à procura daquela uma, visagem que se esgueira e vira manga, folha, galho.

Matinha

O engenho era simples: a caixa de fósforos vazia, revestida de papel prata, com o talo de vassourinha simulando antena, era recheada de saúvas e o movimento delas dentro do recipiente fechado simulava o som da estática dos radinhos de pilha. O garoto só caiu em si da falcatrua quando recebeu um bruto ataque na orelha direita, ao encostar o “radinho” ao ouvido. Escalou aos berros pela primeira vez o morro. A mãe, esbaforida, gritava para a rua – Cambada de vagabundos! E a molecada esmolambenta devolvia a ofensa com gritinhos agudos de mangoça. Enquanto a mãe arrancava da orelha vermelha e empolada do seu garoto uma saúva que ameaçava esgueirar-se-lhe já pelo ouvido, uns tabefes o lembravam de que ele deveria deixar de ser burro e não se meter com aquela corja de malandros sem rédeas que povoava os mais recônditos buracos do bairro onde eles morariam a partir de então: a Matinha.